Resenha – Dom Casmurro

Eu li Dom Casmurro ainda na adolescência. Lembro de ter o livro nas mãos durante as viagens de ônibus entre o colégio e minha casa e vice-versa. Anos depois, ao ouvir sobre uma possível correlação da obra com Otelo, de Shakespeare, decidi que seria adequado reler a obra. Mas foi na leitura coletiva com o Blog Mundo dos Livros de junho de 2020 que isso, de fato, se concretizou. Agora, mais madura e tendo passado por mais coisas na vida, percebi camadas que antes não era capaz de ver.

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A história em si, acredito que a maioria deva conhecer das aulas de literatura: Bentinho se apaixona por sua amiga de infância, Capitu, e ela por ele, mas esse amor parece impossível de se concretizar, já que o rapaz está destinado a ser padre por conta de uma promessa feita por sua mãe, antes mesmo dele nascer. Após algumas maquinações e movimentações de personagens, Bentinho se livra do seminário, torna-se advogado e consegue casar-se com Capitu. Porém, o pouco tempo que permaneceu no seminário lhe trouxe o seu melhor amigo, Escobar, que permanecerá em sua vida por um longo tempo.

Quantas intenções viciosas há assim que embarcam, a meio caminho, numa frase inocente e pura!

p. 103

No decorrer da narrativa, Bentinho vai modificando seu modo de ser, ficando “casmurro”. Ele torna sua vida familiar um tanto difícil e despeja suas desconfianças no leitor. Nada disso é spoiler, uma vez que o enredo é conhecido por (quase) todos e o próprio Dom Casmurro nos conta o final da história logo em suas primeiras páginas, já que este seria seu livro de memórias, escrito em idade madura.

A primeira coisa que precisa ser dita sobre esse livro é que seu narrador não é confiável. Assim, tudo o que ali está escrito pode ser visto com desconfiança, como em um depoimento que deixa muitas pontas soltas e que cabe ao leitor e à leitora ligá-las. Isso é característico de Machado de Assis, que sempre brincou com a ironia, as figuras de linguagem, os símbolos, desafiando a atenção das pessoas e criticando a sociedade.

“Na vida há dessas semelhanças assim esquisitas.”

p. 199

A influência das obras de Shakespeare são claras, com muitas alusões direta às suas histórias, como no momento em que Bentinho vai ao teatro assistir a uma representação de Otelo. E não apenas o Bardo inglês aparece em suas páginas, mas outras grandes figuras da literatura, da mitologia e da cultura mundial de sua época.

A simbologia é muito forte em Machado de Assis, nada é fortuito. Até mesmo as cores, as comparações, os nomes, tudo tem uma razão de ser e deixam pistas sobre o verdadeiro caráter das personagens e os acontecimentos a sua volta. Muitos capítulos que parecem estar ali para “encher linguiça” são, na verdade, essenciais para a compreensão da trama, e geralmente contendo uma alta carga de linguagem figurada. Machado de Assis não queria estragar a experiência de leitura de ninguém, pelo contrário: ele constrói um enigma delicioso de tentar decifrar.

É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas.

p. 145

É assim que o Panegírico de Santa Mônica e a teoria de um tenor sobre a vida ser, em verdade, uma ópera, por exemplo, parecem absurdas no livro, à primeira vista, mas contém chaves para todo o romance.

Sobre minha visão um pouco mais amadurecida da obra (ao menos, em relação aos meus dezesseis anos), minhas opiniões não mudaram, apenas se fortaleceram e ganharam novos argumentos. Além disso, consigo enxergar agora, com mais clareza, um relacionamento tóxico e abusivo por parte de Bentinho que esmaga Capitu a cada momento, ainda que esse seja um assunto da nossa época (o que não significa que as relações em si sejam exatamente “novas”). Creio que quem terá passado por relacionamentos abusivos, de qualquer sorte, poderá compreender melhor os sentimentos de Capitu e seus motivos para agir como agiu (ou como Bentinho diz que agiu, como queira).

Livro físico de Dom Casmurro e Kindle com a capa do livro Dom Casmurro dispostos na imagem formando um coração. Há um coração de origami vermelho acima do livro e do kindle. O fundo é composto de tecidos preto, na parte inferior, e branco, na parte superior.

Por fim, me impressiona, porém não me surpreende, que após tantos anos (Dom Casmurro foi lançado em 1899), continuamos colocando Capitu no banco dos réus, sem questionar o comportamento de Bentinho, sem discuti-lo a fundo. Acho bastante significativo que, um livro narrado por um homem, que leva em seu título o nome desse homem, sobre o suposto comportamento de sua esposa em que existe apenas o ponto de vista desse homem, ainda seja a mulher julgada e discutida, sem ao menos ter tido a oportunidade de falar por si. Mas isso é assunto que merece um post inteiro.

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